1.11.06

. . . 2 SONHOS . . .

Fragmentos do evangelho (Redoble por Rancas) de nosso compadre peruano, Manuel Scorza, magnânimo membro do TR.


Nem para o Ladrão-de-Cavalos, nem para o Olho-de-Coruja, nem para o procurador Abigeo contou que sonhara com eles. Pela primeira vez na vida, Abigeo se confundia num emaranhado de sonhos raros. Sonhou o Abigeo que chegou em Tambopampa. Por alguma circunstância que nenhum morador explicou satisfatoriamente, o sol, parado numa hora incerta, pendia de um céu lívido. Nem a noite avançava, nem o dia retrocedia. Passadas umas semanas, o sol começou a apodrecer. Pouco a pouco a luz virou um inchaço: no dia de sua chegada o céu era uma chaga só, a luz gotejava. Com muita dificuldade, o Abigeo abriu caminho entre os farrapos de luz tumefacta. Desceu às casinholas. Sentado numa pedra, avistou o Ladrão-de-Cavalos. Alegrou-se por encontrar um cristão no meio de semelhante lividez. "Aonde vai, compadre?" O Ladrão-de-Cavalos não percebia as maléficas transmutações do céu. "Então não sabe, compadre? Já são as nove. Não sabe mesmo?" Soltou uma gargalhada e gritou: "Vou ao cume do Murmunia!" "Vamos", aceitou o Abigeo e ficou estatelado: o Ladrão-de-Cavalos aprumava-se sobre pés enormes. O Ladrão-de Cavalos, o mais desaforado varão das comunidades, apoiava-se agora sobre os pés de aterradora grossura. Pés mais altos que a cintura do Abigeo, dedos mais grossos que os seus braços arbóreos. O Abigeo ficou sem fala. "Depressa, compadre!", disse o Ladrão. "Não perca tempo." O Abigeo conseguiu umas gotas de voz: "Que doença é essa, compadre?" O Ladrão desarrolhou a garrafa de uma espumante gargalhada. "Ah! meu compadre, isso não é doença, é precaução!" E explicou-lhe que se anunciava uma fatigantíssima carreira que ele, o Ladrão, ganharia. Os cavalos, seus íntimos, os potros, seus compadres, suas patas bem lhe diziam que ganharia. Então os equinos o aconselharam a deixar crescer os pés. Era fácil: bastava mergulhá-los durante sete noites em uma lagoa. Agora, era preciso pintar os pés, todas as noites, com uma anilina diferente: vermelha, azul, amarela, verde. O Ladrão tinha sofrido com o tratamento. Suas gargalhadas demoliam as rochas. "Quero vê-los! Quero ver a cara do subprefeito e das autoridades no dia em que me entreguem a taça. Quem é que vai me segurar com semelhantes pés?" E se escangalhava de rir. O Abigeo acordou tremendo. Saiu para o quintal e meteu a cabeça num balde de água gelada: ainda escuro, encilhou o seu cavalo e subiu a Pillao para falar com Polonio Cruz.

***
O Abigeo alargava as rédeas do Primavera, confiado no conhecimento do cavalo. Pensava. Pela primeira vez na vida não distinguia as palavras articuladas em seus sonhos pelos Velhos. O Velho da Água, o Velho do Fogo e o Velho do Vento mastigavam frases de lã. Não decifrava a mensagem. Quis purificar-se, jejuou vários dias e até se privou de visitar as suas mulheres. Não ouviu melhor. Os Velhos anunciavam um forasteiro sem rosto. Era um homem que em vez de carne ostentava um parede de carne lisa sulcada por sei listas pretas. Os Velhos o conduziram pelo caminho de Chinche e sumiram entre penhascos. O Homem das Seis Listas avançava pela estrada seguido por uma multidão de homens igualmente sem rosto. A formação tomava o rumo de Murmunia. Pela respiração arquejante dos sem-cara, o Abigeo reconheceu que eram forasteiros. Misturou-se nas filas. Perto de Murmunia deram com um cavaleiro. Pela desordem das suas rédeas, via-se, a uma légua, a bebedeira. O Abigeo aproximou-se e envelheceu: era ele mesmo. Disfarçadamente, olhou o seu próprio rosto manchado pela farinha e o pescoço de touro enredado de serpentinas. Que festa era? O Abigeo passou rente ao Abigeo sem reconhecê-lo. E pior: como se o sonhador fosse invisível, o Abigeo parou ao lado do Abigeo e mijou seprentinas. O outro não se alarmou: mais do que pelo sinistro jorro, interessava-se em ler a mensagem escrita nas serpentinas. Não pôde e aborreceu-se. O Abigeo aproximou-se e tratou de ler: só decifrou palavras confusas " . . .carnaval. . . , lagoa, corre, corre. . . , o padeiro dos mortos. . . "

1 Comments:

Blogger lucas parente said...

sao todos uns idiotas, ninguem se manifestando: só pode ser porque nao leu....

05:33  

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