Enquanto subia a escada pisando no tapete vermelho todo um cerimonial transformava a casa. O chão bege atapetado não era o mesmo. Bege, a cor da ausência. Era noite, mas a janela brilhava e tudo se enchia de um claro-escuro. Era noite mas era dia.
Subindo a escada de tapete vermelho; subindo a escada rangendo; subindo apreensivo a escada viva; não era eu, era outro o que subia. Noite ou dia, o quarto de cima se abria como nunca.
Havia um cheiro acético naquele lugar, parecia ser exalado pelo branco de suas paredes. Uma certa pressão, um tremor, dava a sensação de que o pequeno edifício estava em movimento. Aquilo mais parecia um vagão de trem. Meu corpo não existia e, no entanto, pude me dar o luxo de topar com o pé num pedaço de ferro. Não senti dor, só olhei e vi que tinha um pé. E tudo era uma sensação difusa de calor. E minhas mãos soltavam não suor, mas bolinhas sensório-motoras. Bolinhas transparentes de energia. Se acinzentavam a medida que libertavam-se de mim. E no mais, tudo era cama, uma enorme fofura vermelha e laranja, um sonho que me chamava, um golpe baixo. Deitando nela, sensação de liberdade, deitando, entregando-me, que prazer!, deitando, caindo vertiginosamente, profundamente, no sono, caindo. Aquele não era mais eu. De jeito nenhum, não era.
Ele, o corpo ali estirado. A fofura da cama, os milhões de fios delicados, elásticos, da cama. Nada disso eu sentia, nada mais importava. Tudo eram paredes brancas sem fim.
O quarto parecia agora menor. Lá fora a neblina e a luz amarelada da noite. Umidade sem fim. O barco balançava num ritmo sonolento. De repente goteiras, infiltrações traiçoeiras, linhas formadas pela água nas paredes. Aquilo ia virando um aquário. Eu era apenas Eu. O corpo não era mais meu. As paredes úmidas cada vez mais perto. Havia aquele som grave, uma vibração. Era como se a casa saísse pelo mar afora. Um mar de prédios baixos, todos iguais. Tijolos e umidade. Tudo cinza lá fora, tudo esmagadoramente cinza. Uma certa neblina começava a passar pelas paredes. Elas iam se fechando. No meio, o corpo. Entre quatro paredes, o fogo. E tudo ia assim, sem seguir exatamente, vibrando, sem mover-se para além do balanço, do vai e vem enjoativo. Náusea. Aí veio o teto. A luz de cima era a única coisa que não vibrava.
Pra fugir das paredes o corpo olhou para o alto. Havia nele uma bola central de luz branca, assustadoramente branca, sem ventilador. O tempo, assim, olhando pro teto, o tempo tornou-se expansivo. Não havia ventilador, não havia vento. E um calor insuportável veio no exato instante em que se notava a ausência de vento. Eu era corpo novamente. Distraí-me. Esqueci o teto e me sentei.
Senti com minhas mãos a fofura da neblina. Ela brilhava pra mim, mexia com todas as células de minha pele. Senti, na cama, a expansão do meu corpo que ia, explodia calmamente, levado pelo tempo. Uma experiência e tanto, uma calma explosão. Eu e a neblina, uma relação... éramos um só.
A calmaria do aquário sumiu. Um vento dispersou a névoa e me jogou de volta pra dentro do meu casulo. Minha pele se arrepiava: era a nudez. Amanhecia.
O andar de cima se convertera num quintal cheio de plantinhas secas, ervas daninhas, manjericões sob o céu. Fazia um frio do diabo. Essa é uma cidade baixa e daqui eu vejo a usina de Battersea com suas chaminés brancas. Alguns corvos despontaram voando na primeira claridade da manhã. O frio e o vento me cruzam os braços. Novamente, quando vou me perdendo na paisagem nebulosa, vem a calmaria.
Tudo em volta estático. Mais adiante uma semente amarela caindo. Um amarelo que destoa de todo o cinza. Algo delicado, que lembra uma injeção. No mesmo instante a terra treme. Uma gota de sol, mesmo que lá longe, tem o poder de tudo desestabilizar. A tremedeira fez soar alarmes e mais alarmes. Sirenes e carros de bombeiros, ambulâncias, policias, pessoas nas janelas. Era dia, mas não tinha cara de sê-lo. Um arrepio me correu pela espinha e quando percebi um cogumelo atômico já havia se formado no horizonte. Avermelhado. Lindo. As casas iam se descolando do chão, tornando-se pó, espuma, onda monstruosa de concreto líquido. Uma vertigem sem igual vinha com a propagação de uma luz amarela. Tudo parecia se despregar, tudo subia, mas a sensação era de queda, de uma queda violenta para trás. Que cheiro de queimado.
Acordei num calor infernal. Abrindo as persianas me deparei com um dia lindo, de praia caótica e maresia. Ventava muito. Com o vento vinha a fumaça espessa. Um supermercado pegava fogo. Era a liquidação.
Tentei me lembrar do que sonhei. Escrevi. No final pus o seguinte: “é gozado que essa cidade tão caótica nos remeta aos dias da criação, e que Londres, com sua rainha estabilidade, seja uma cidade perfeita pro apocalipse...”. Acendi um cigarro e saí pra comprar pão.